Descrição
“fazia muito calor, malangatana debatia-se no leito como se procurasse por algo. procurava o sono, mas este escapava-lhe como a água entre os dedos. sempre que o sono se lhe negava, malangatana abandonava o repouso e procurava o brilho das estrelas estampado no céu. contemplava-o sem admiração, alvejava-o com os seus pretos olhos e imaginava pirilampos gigantes de matalana a dançar marrabenta para quem não apreciava o dia, mas naquela noite, faltou-lhe vontade
estaria dois dias em matalana, na terra que o nascera. matalana era também o berço da arte, da sua arte, e era por essa razão que ali estava, para criar. lá ficaria dois dias, e durante esse tempo, o seu ateliê, na cidade, permaneceria fechado
com o resplendor, malangatana pôs-se a pé, tinha uma empreitada que considerava dificílima. quando abriu a porta da casinhota, o pintor sorriu, saudava o sol quente e folgado, cumprimentava o mufana, o rapaz que se oferecera para ser o seu assistente. o pequenote ergueu-se de um salto e saudou-o com um jovial ‘bom dia!’. o pincelador, simpático, aproximou-se e, segurando-o pelo abdómen, deu-lhe um beijo na bochecha. o mufana fechou os olhos, não gostava nem de beijos de homens nem das barbas brancas do artista que o alfinetavam. depois, retribuiu com voz espaventosa o bom dia
saíram os dois por um carreiro, o mufana carregava um
saco de poliéster, dentro iam embalados três cinzéis, um serrote, um martelo e uma lixa. o saco exigia redobrado cuida-do, o mufana sabia que o pintor, o seu mestre durante aqueles dias, apreciava assaz os seus utensílios de criação, porquanto eles não eram apenas objectos, eram como camaradas de labor
os seus olhos brilhavam enquanto jornadeavam. malangatana ia à frente, pousando instintivamente os pés, rebolando o corpo como se oscilasse num passo de dança. trauteava uma canção, e depois, não se decidia, assobiava alto feito pás-saro conhecedor da poesia de wazimbo. no seu ombro, um machado brilhava a sua lâmina num voo metálico não permitido. o capim parecia estar feliz com aquela visita inesperada, por isso, quando o pintor e o mufana passavam, o capim comprido esticava os seus inúmeros braços, roçando-lhes, causando, às vezes, cócegas ao pequeno. ele olhava para o capim com uma careta muito responsável e adulta, e pedia-lhe para que não o chateasse com um dedo magrinho sobre os lábios secos”
Livro de contos “a invenção do cemitério”, do moçambicano Pedro Pereira Lopes, com 14 contos é a versão para o brasil de “o mundo que iremos gaguejar de cor” , acrescida de dois contos inéditos.
Pedro Pereira Lopes Nasceu na província da Zambézia, Moçambique, em 1987. Estudou Políticas Públicas na Escola de Governação da Universidade de Pequim. Escreve poesia, contos e publicou um romance. Publicou os livros infanto-juvenis O homem dos 7 cabelos (2012, Prémio Lusofonia 2010), Kanova e o segredo da caveira (2013), Viagem pelo mundo num grão de pólen e outros poemas (2014), A história do João Gala-Gala (2017, em co-autoria com o músico Chico António) e O comboio que andava de chinelos (2018, Prémio Maria Odete de Jesus 2016). Publicou ainda a colectânea de contos o mundo que iremos gaguejar de cor (2017), e o romance mundo grave (2018, Prémio Literário INCM/Eugénio Lisboa 2017). É membro da Associação dos Escritores Moçambicanos e docente e pesquisador no Instituto Superior de Relações Internacionais, em Maputo. Para o escritor e crítico literário António Cabrita, “Pedro Pereira Lopes é uma das vozes mais interessantes do novo panorama das letras em Moçambique” e “será iniludivelmente uma das figuras cimeiras da nova geração”.
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