Descrição
“Eles vieram em prece contínua, encolhidos de humildade. Quadris parideiros, mãos sopradas a barro. Descobriram as cabeças e se postaram nos cantos. Fé camponesa e missa do galo. Vieram com uma advertência. Deveria amá-los por seus espinhos, reverenciá-los nos álbuns de família. Deu raiva o tanto que doíam. Estavam mortos. E traziam esperança nos olhos mortos.
Tantos que se confundiam. Uma fome, uma dor, uma contrição. E ai de quem! Uns botaram os olhos em mim. Mas ai de quem! Tornaram a fixá-los no chão. Olhei o sofá: duas. Cederam os lugares. Tive pena de suas varizes. Depois lembrei: estavam mortas. E ainda: que precisava de mais assentos. Um fio transmutava arterial em venoso. Os chinelos onde deveriam estar. O restante – quarenta anos em madeira de lei, esgotamento nervoso, falta de homem e dinheiro -, o restante tremia. Como se fosse oito, em talo verde e seiva. Estendi o braço. Fez-se luz, bem vinda luz. A sala vazia. E os convidados?
O fogo-fátuo reluzia a palidez dos rostos. Uma fome, uma tuberculose, uma cicatriz. Buracos negros a absorverem radiação luminosa. A sala fedia vela de promessa. Calculei que, além de assentos, deveria comprar castiçais para o caso de cortarem a luz. Só não sabia o que fazer com os mortos. Não podiam ser espremidos embaixo da escada. Não saíam com detergente, davam gastura. A seguir, como se pudessem ler meus pensamentos, foram se retirando pela área de serviço. Silenciosos como haviam entrado. Encabulados por meus quarenta anos sem lei nem regra.”
– Os contos de Neuza Paranhos nos remetem em pura viagem: seja para Amsterdã, São Tomé das Letras, viagens de melancolia ou recordações, da passagem do tempo e da idade, para terras americanas, ou então para esse local insondável, quase impenetrável: para o mais profundo do ser humano.
Neuza Paranhos é escritora, tradutora e jornalista. Tem diversos contos publicados nas revistas Cult, Ciência e Cultura e nos jornais Rascunho e Le Monde Diplomatique Brasil. Em 1998 lançou a coletânea Av. Marginal pela editora Com-Arte. Vive em São Paulo, na Vila Beatriz, bairro onde os vizinhos ainda conversam e as crianças brincam na rua. Pretende resistir à especulação imobiliária e outros desastres na base da escrita.
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